GUERRA – ESTADIA

GUERRA – ESTADIA

Parti em rendição individual em fins de Outubro/1968, regressei em Dezembro/1970, vinte e sete meses de estadia na Guerra na Guiné-Bissau.

Estava a desembarcar ao entardecer no Cais do Pidjiquiti, local histórico da revolução, e não muito longe uns guindastes carregavam caixões para um navio da C. N. Navegação. Não podia ter pior recepção e cartão de visitas. Entrava numa guerra a doer, não era um filme, era uma realidade… Da primeira até à última noite, nunca adormeci sem ouvir bombardeamentos. Do lado do IN, foguetões, RPG 2 e 7, costureirinhas, minas antipessoais das nossas tropas, G3, canhões e morteiros de 107 mm, além de Heli canhão e dos fiats da Força Aérea. Utilizava-se a MK, com tambor, transportada por militares com cordões envolvidos ao pescoço, com fitas de balas. Não eram colares de enfeites, mas sim de atingir o IN. Não eram da guerra do Raul Solnado.

A guerra tem muitos intérpretes, com vários graus de perigo iminente, para uns menos graves,  para outros de total sacrifício. Todos, todos sofremos com a estadia naquele território. Muitas lágrimas choradas, muito sangue derramado, nas frentes da guerra muitos feridos, mutilados, mortos…

Não esqueço a morte do meu companheiro de estudos da Escola Apostólica de Cristo Rei, em Gouveia, o Furriel Miliciano António Novo de Vila do Touro (Sabuga), quinze dias antes confraternizáramos no Batalhão de Engenharia. Quando são próximos dói mais…

Colocado para o Departamento de Fardamento da Manutenção Militar, camarada mais habilidoso, tomou conta das minhas funções militares.

Um mês no Quartel General, “O Biafra Português”, onde se comia estilhaços de frango e arroz. Fazia serviços de escala, quase diários, adjunto do Oficial de Dia e do Oficial de Prevenção. O Capitão dormia, o Oficial Miliciano trabalhava, viajava e percorria postos estratégicos.

 Nessa época, o aeroporto de Bissalanca era ponto de passagem de aviões com material bélico e económico para a Guerra do Biafra.

Para aliviar a mente e não só, víamos raras beldades, mulheres de oficiais do Quadro Permanente do Exército, a tomar banho na Piscina do Quartel General.

Finalmente chegou a ordem do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné para seguir marcha para o Batalhão de Engenharia 447 em Brá. Ali fiquei ligado ao Conselho Administrativo quase vinte e sete meses, com um horário de “permanentemente ao serviço” e “excursões ao Mato” - de D.O., de helicóptero, de coluna militar, de barco - levando os salários dos trabalhadores nas obras de engenharias, espalhados por diversas unidades.

Através do Movimento Nacional Feminino, havia a entrega mensal de uma certa quantidade de aerogramas, tipo envelopes de correspondência. Com os endereços escrevíamos para os nossos familiares, amigos e namoradas.

Depressa chegou o Natal, Quadra do Ano, em que a Unidade Militar entrava de prevenção máxima, rigorosa, sem licença para vir à Metrópole. Esse primeiro Natal, como prémio, não comemos batatas nem bacalhau. Umas rações de combate e já não foi mau…

Comecei a inteirar-me do Batalhão de Engenharia, que dirigia e coordenava abastecimentos e as obras da Guiné-Bissau.

Por indicação de alguns camaradas, ia todos as semanas levar e trazer a roupa de farda pessoal a uma Leprosaria dirigida por Irmãs Religiosas Italianas. Pela primeira vez contactei com leprosos e nada me aconteceu, a lepra estava no Governo de Lisboa.

Cheguei a Catió junto à fronteira da Guiné - Conacri, que tinha sido flagelada com foguetões, sempre com o coração nas mãos durante cinco dias, porque quando as bombas caem não escolhem hierarquias militares. Parti de Buba-Aldeia Formosa, de formosa só tinha o nome, numa emboscada à coluna militar, fora atacada pelo IN, no início e na cauda registaram-se apenas dois feridos sem gravidade.

De regresso de Teixeira Pinto, numa avioneta D.O., carregada com sacos de correspondências, sobrevivemos os três passageiros, graças à agilidade, competência e sangue frio do piloto, a enfrentar uma forte tempestade tropical. Cheguei a despedir-me do mundo…

A melhor viagem era quinzenal e ao Cumeré, local onde a Engenharia construía um Quartel para formação das Tropas Africanas. Entregava os salários aos furriéis milicianos de engenharia para pagar ao pessoal trabalhador. Tinham sempre uma gastronomia especial para partilhar com o alferes miliciano. Comi pela primeira vez pão feito com farinha de arroz.

Mais tarde encontrei nativos portadores de bilhetes para ver filmes na capital da Guiné. O IN gostava de cinema…e ria-se com as coboiadas.

O Batalhão de Engenharia dispunha de muitos hectares de cultivo, agropecuária, muitas árvores de fruto, hortaliças e uma grande quantidade de vacas.

No Carnaval, o Alferes Miliciano Castanheira, membro do grupo TEUC (Teatro Experimental da Universidade de Coimbra) mandou pintar os cornos a todas as vacas. Quem não gostou da brincadeira foi o Comandante, que determinou a transferência para uma Unidade do Mato, onde acabou a Comissão do Ultramar.

Ocupados com o trabalho, as distracções eram muito limitadas. Saboreávamos umas ostras, um camarão muito pequenino, acompanhado sempre com umas granadas de litro e meio de cerveja, uns petiscos, uma caldeirada de cabrito, umas galinhas do mato, uns uísques, leituras, ouvir as notícias BBC de Londres, os relatos de futebol em ondas curtas, os sons dos batuques, misturados com os sons da guerra, uns jogos de sueca, o jogo do King, umas escritas.

Aos Domingos era ver chegar as beijudas (moças guineenses) com os cestos de roupa lavada dos militares. O Zé Soldado aproveitava para lhes dar umas apalpadelas, uns beijos às escondidas, enquanto o pessoal  superior ia dar um giro nocturno ao Pilão – Bairro da Ajuda-, tipo Bairro Alto de Lisboa, mas em miniatura, com a bênção e o perdão de um ou outro capelão militar, um homem não é de pau. Manuel Leal Freire: “o C……, é o rei dos paus. Não há pau como o carvalho/Irmão gémeo do c……, /C`oas mesmas limitações/Um antes de apodrecer/Outro antes de envelhecer/Que é o fim das desilusões…” O Escritor tem razão.

Enquanto alguma sociedade se bronzeava na Linha de Cascais ou no “Penico de Lisboa”, a Costa da Caparica, os nossos militares armados até aos dentes, de camuflado cacimbado, atravessavam as bolanhas, os lamaçais, com água até à cintura, ás vezes a ultrapassá-la, sujeitos às consequências de uma guerra não vencida.

Sempre que um oficial acabava a comissão militar obrigatória, fazia-se uma pequena festa de despedida, além dos abraços soluçados, não faltavam as estafadas, repetidas e insonsas palavras do comandante do Batalhão. Alguns de nós, como presos em celas, anulávamos mais um dia no nosso serviço militar obrigatório.

No teatro de guerra acontecem as mais horríficas cenas por causas muitas das vezes desconhecidas. No entanto, também há tolerância, solidariedade, camaradagem, unidade,  caridade, misericórdia e fraternidade.

Na opinião de Albert Schweitzer, “O Mundo tornou-se perigoso, porque os homens aprenderam a dominar a Natureza, antes de se dominar a si mesmos.”

A minha estadia militar na Guiné dava um filme… a próxima crónica é o meu regresso.

 

 

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Agosto/2018

 

 

 

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Comentários

Meu amigo Fernandes, li com atenção esta crónica sobre a Guerra da Guiné, onde o meu falecido Pai também esteve e me contou algumas coisas que agora relembro nestas tuas palavras, aliás, se o meu pai fosse vivo teria mais um ano do que tu e como também era de engenharia certamente que esteve contigo... É bom que Coimbrinhas, Alfacinhas e outros meninos de agora não se esqueçam que há homens com memória que honram os que lutaram e morrem pelo seu País, muitas vezes sem saberem muito bem porquê, pois a guerra nunca faz sentido...

Abraço e Obrigado pela tua exemplar lucidez