AGAR

 

De Bersabé nos areaes ardentes
O desmaiado sol ia esconder-se,
E Agar, a expulsa Agar, gemendo afflicta,
Unia ao peito o moribundo filho.
O vaso d'agua que lhe dera o esposo
Esgotára-se em breve, e no deserto
Com seu pobre Ismael não descobrira,
Desde o romper do dia, a anciada fonte.
O dia declinava: eis que o infante,
Que pela mão a acompanhava exhausto,
Ardendo em sêde lhe succumbe ás plantas.
Ella vê-o cahir, ella estremece,
E, os olhos turvos em redor lançando,
Aqui e alli correndo, busca ainda,
Mas debalde, um frescor. Emfim cançada,
Ella mesma tambem, eis volve ao filho,
Prostra-se, abraça-o, com maternos beijos
Tenta anciosa prolongar-lhe a vida.


«Filho, meu filho--murmurava a triste--
«Á sêde vaes morrer! Oh! se o podésse
«Adivinhar teu pae, cruel não fôra;
«E Sara, a propria Sara, enternecida
«Emmudecêra seus fataes ciumes.
«Oh! não gemas, não gemas, que debalde
«Invocas tua mãe. Ella te escuta,
«Mas não póde salvar-te: dentro em pouco
«Em seu regaço exhalarás a vida.
«E hei de eu vêr-te expirar? vêr n'esses olhos
«Sumir-se a luz do dia? e n'essas faces,
«Que tantas vezes me sorriram ledas,
«Vêr as ancias da morte? Oh! não, não posso
«Vêr morrer o meu filho.» Disse, e ao tronco
D'uma arvore visinha o recostava;
Depois, com tristes, vagarosos passos,
Foi n'outros sitios aguardar a morte.
Alli, ao vêr o sol que esmorecia,
Desatou a chorar, e estes queixumes
Em voz convulsa murmurou ainda:


«Sol do deserto, que o meu pobre filho
«Vês expirando na soidão além,
«Com teu suave derradeiro brilho
«Beijar-lhe a face carinhoso vem!
«Oh! vem, que eu triste n'essa face pura
«Materno beijo nunca mais darei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!


«Quando o teu facho resurgir no oriente,
«Tudo na terra sentirá prazer;
«E lá nos campos de Mambré virente
«Mais bella a rosa te verá nascer:
«Só elle em sombras d'uma noite escura
«Adormecido ficará, bem sei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!


«Por mim não choro, que infeliz escrava
«Meus tristes dias findarei aqui:
«Ai! choro aquelle que no mundo amava,
«Choro meu filho que expirando vi.
«Maternos mimos, filial ternura,
«Lembrae-me os tempos que feliz gosei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!


«Oh! quem dissera nos passados dias
«Em que ao meu collo te cerquei d'amor,
«Oh! quem dissera que a morrer virias
«N'este deserto, sem achar frescor?
«Emmurcheceste, já não tens verdura,
«Mimoso arbusto que gentil criei!
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meu prantos, sem cessar correi!


«Tantas esp'ranças, que o Senhor gerára
«Na escrava humilde, findarão assim.
«Foi mais feliz a geração de Sara:
«Cruel destino só me coube a mim.
«Em vão, em vão me prometteu futura
«Longa progenie: sem ninguem fiquei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!


«Quem, ó meu filho, n'este solo ardente,
«Quem no jazigo te virá deitar?
«Dizer-te:--dorme--e, reclinando a frente
«No teu sepulchro, sobre ti chorar?
«Eu não, que em breve n'esta plaga obscura
«Tambem já morta como tu serei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!


«Aves agrestes que me ouvis as queixas,
«Com tristes vozes o seu fim chorae!
«Brizas do ermo, suspirae-lhe endeixas!
«Astros da noite, seu dormir velae!
«Velae-o todos, que a final ventura
«Que vos reservo nem sequer terei.
«Perdi meu filho: sobre a terra dura
«Correi, meus prantos, sem cessar correi!


    Mas Deus! que viu ella,
    Que um ai desprendeu?
    Que pomba tão bella
    No manto do céo!
    Que pennas de prata,
    D'azul, d'escarlata,
    O espaço retrata
    Sereno, sem véo!


    É anjo voando!
    Que brilho que tem!
    Que véos ondulando
    De pura cecem!
    Que anneis de cabello
    Nos hombros de gêlo,
    No collo tão bello
    Cahindo ao desdem!


    Descendo, descendo,
    Já perto chegou;
    E a pobre tremendo
    Calada ficou;
    E o anjo sorria
    Com doce magia,
    E á terra descia,
    Na terra poisou.


    E em roda mil lumes
    De brilho sem fim
    Lançava, e perfumes
    De nardo e jasmim;
    E a voz argentina,
    Suave, divina,
    Soltou peregrina,
    Fallando-lhe assim:


«O que fazes, Agar, porque choras?
«Nada temas, não tens que temer:
«Se o teu filho perdido deploras,
«Esses prantos converte em prazer.


«Do deserto chegou seu gemido
«Ás alturas que habita o Senhor:
«Surge, surge, e teu filho querido
«Vae ao longe buscar sem temor!


«Surge, surge, recobra a esperança,
«Que as promessas cumpridas serão!
«O teu filho, o Senhor t'o afiança,
«Será pae d'uma grande nação.


«Gloria a Deus que no céo ouve as mágoas
«De quem soffre na terra a carpir!
«Eis um jorro de limpidas aguas:
«Ide n'ellas a sêde extinguir!»


E, assim dizendo, lhe mostrava perto
Uma fonte escondida entre verduras,
Como nunca se vira no deserto,
De tão grato frescor, d'aguas tão puras.


Depois, batendo as esmaltadas pennas,
Deixou na terra um luminoso traço;
E, agitando seu manto d'açucenas,
Sumiu-se ao longe na amplidão do espaço.


Erguendo aos céos a radiosa fronte,
A pobre mãe ao Senhor Deus louvava;
E, enchendo o vaso no crystal da fonte,
Com elle ao filho a salvação levava.
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