*A BIOGRAPHIA DE SATAN*

Fragmento

Eu vou contar a grande lenda escura
Do fulminado tragico da Luz!
Seu antigo esplendor e sorte dura
Quando andava entre os povos da Escriptura,
E comprava os juizes de Jesus.

Elle é o Velho Mal, o Orgulho, o Enfado,
E sómente Satan é um pseudonymo;
É o auctor do Remorso e do Peccado,
O morcego da Biblia, e o cão damnado
Que espancava de noute S. Jeronymo.

No tempo em que era bello, grande e forte,
Fez a guerra dos astros contra Deus;
Tem-lhe sido incostante e varia a sorte!
--Andava roto e pobre por Francfort
Nos bairos tortuosos dos Judeus.

Ó anjo expulso, triste e escarnecido,
Que foste mais fulgente do que o dia!
Deus adorado em Delphos e em Gnido!
Ah quem mais do que tu terá soffrido,
E teve essa ideal melancolia!

Já Vier contra ti perdendo o tino,
Fez dos seus crús pamphletos um açoute;
Fez-te sonetos, lubricos o Aretino,
E S. Thomaz contou o teu destino,
E as aventuras célebres da noute.

Quem dirá os espinhos que cingiste!
Quem pesará teu calix de agonias!
E quantos longos seculos carpiste
Aquella luz que cae maguada e triste,
Ó grão crucificado d'ironias!

Eu sei que hoje estás morto ou retirado,
Ó corvo escuro e mau do firmamento!
E que andavas no mundo envergonhado,
Já doentio e calvo, e desdentado,
E que era o teu catarrho a voz do vento!

Tu foste sabio, confessor e medico
Nos tempos, legendarios, medivaes...
Tu eras visionario, vão, prophetico...
E o mocho que adejava escuro e tétrico
Nos conventos, egrejas, cathedraes...

Eu sei que foste tu que, um dia, impuro,
Tentaste a castidade de Rachel!
Em Delphos desvendavas o futuro...
E cheio d'um pavor tragico e escuro,
Deixaste envenenar-te Daniel.

Em Sodoma, na noute derradeira,
Tentas as filhas sensuaes de Loth!
Fazes de Roma toda uma fogueira!...
E és tu mesmo que escolhes a figueira
A Judas, natural d'Iscarioth.

Foi _elle_ que abrasou na carne, um dia,
A tribu sensual de Benjamin!
Prégou na cathedral d'Alexandria;
Era pae d'um senhor de Normandia...
Foi amigo de Nero e de Cain.

Ia tentar o asceta á sua cella
Nos claustros escuros do Occidente;--
Aos Magos escondeu nos céus a Estrella...
E andava disfarçado em sentinella
Guardando o Justo, o Bom, e o Resplendente.

Ao homem tinha uns odios velhos, tragicos...
E era elle, o que andava entre as pelejas!...
Corrompeu os conselhos areopágicos;
E fazia roubar pelos seus magicos
As hostias consagradas nas egrejas.

Fazia distrair a S. Clemente
Com a bulha invisivel de corceis;
E era elle, nas horas do poente,
Quem apagava as luzes, de repente,
Quando oravam nos templos os fieis.

Tomava, ás vezes ordens e a tonsura...
E benzia as prostradas povoações;--
Fazia a voz então austera e dura,
Explicava os segredos da Escriptura,
E cantava entre as lentas procissões...

Dava n'um tom dogmatico uma idéa,
E vinha discutir com S. Thomaz;
Iniciava os sábios da Chaldêa,
E nos biblicos tempos da Judea
Andava a intrigar Christo com Caiphaz.

Tem no rosto o descor d'um fulminado;
--Era mulher nas lendas monacaes;
Outras vezes gigante e corcovado,
E vagava no mundo disfarçado,
Como os deuses nas formas d'animaes.

Nas regiões serenas, luminosas,
Encontram-se inda os seus lucidos rastros?...
Ó constellações felizes, piedosas...
Inda, ás noites, choraes silenciosas
A grande lucta biblica dos astros?...

Nasceu nas doces, puras regiões?...
--Ah quem onde dirá nasceu Satan?!...
--Nasceu entre as demais constellações?
--Commandava as flammantes legiões?...
E seria seu pae Leviathan?...

N'esse tempo do exilio as penas mestas
Jupiter não soffrera inda proscrito;
Apis não inventára suas festas...
Não errava inda Pan pelas florestas,
E não ladrava Anubis no Egypto.

Pára aqui, n'este ponto, a humana vista!...
--Quem sabe se do velho Cahos nasceu?...
Só quando contra Deus a lança enrista,
É que segundo, o eleito, o Evangelista...
Não se acha mais o seu lugar no Ceu?...

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