O gato

Era um gato empertigado, senhor do seu nariz. Grande e gordo.

Outrora fora ágil mas parecia não dar pela mudança, a não ser nas suas costumeiras e longas ausências em que deambulava por onde lhe apetecesse. Aí apercebia-se que as gatas do bairro e até de outros arrabaldes eram mais selectivas. Queriam gatões elegantes transbordantes em feromonas de prazer activo.

Olhava com alguma indiferença, excluído. Nos dias mais reflectidos, vinha-lhe ao pensamento que desejava ser humano. As mulheres, essas, entregavam-se a um homem só por gostar. Até podia tornar-se físicamente menos apetecível que elas, lá estavam a lamber-lhe as botas. Um homem poderia ter um harém que entre elas havia disputa singela e diplomática, sempre à espera que lhes desse atenção. Uma gracinha da parte dele e zás, ficavam perdidas. O que faz haver mais mulheres que homens... Uns sortudos! Ou as mulheres eram parvas ou as gatas eram espertas.

Rápidamente esquecia o pensamento quando uma gatona lhe surgia distraída. Algumas iam a tempo de arreganhar-lhe os dentes e eriçar o pêlo. Não se chateava com canseiras de galanteios ou com golpes de posse e dava meia volta. Outras vezes, tinha sorte. Não tinha tempo para preliminares ou a oportunidade poderia escapar mas, no acto, em pleno gozo, miava como se fosse um leão. Se o fosse, que rugidos seriam. Pena a não retribuição da gata. Nem o som se ouvia. Cortava-se-lhe um pouco o fulgor mas satisfazia-se. - Pois mia com quem quiseres que eu cá já vou andando.

A seguir, vagabundeava mais um pouco em cima dos muros ou nalgum beiral mais robusto.

As noites de lua cheia ofuscavam-lhe o seu olhar felino na observação passageira das cenas alheias de cio. Assistiu com olhos de carneiro mal morto a interrupções canídeas e intrometidas. Eram gatas e gatos em fugidas relampago. Tinham destreza na corrida. Já a tivera também. Mas ora, ele era burro velho. Pressentia o inimigo de quatro patas antes de virar a esquina. Mudava antecipadamente o trajecto e enfiava-se por portões de quintais.

Muitos anos de experiência. E que não viessem cá dizer que era gato de casa porque saía sempre que lhe dava na real gana. Cheirava aqui e ali, mas era esquisito. Não comia nada daquelas porcarias de rua, ainda por cima restos sabe-se lá de quem. Era apenas uma necessidade dos cheiros. Estava-lhe nos genes.

Preciosa era a comida da Ermelinda, a que se dizia ser sua dona. Belos repastos esses. Prato cheio e barriga cheia. Adorava quando o cheiro do saco das compras adivinhava umas magníficas sardinhas ou cabeças de peixe. O hábito da Ermelinda juntar a espinha à cabeça era coisa que não gostava. Tinha lá necessidade de roer espinhas. Muito menos necessidade tinha de se desgastar em correrias de caçada quando a velha, de vassoura em riste, que nem padeira de Aljubarrota, tentava acertar num rato divertido e descontraído. Errou o alvo. Temos pena. Lá por ele, a soneca, abeirado no degrau da porta da cozinha, era mais importante.

Às vezes interrompia-se-lhe o sono quando ouvia uma voz familiar. A visita da sobrinha da Ermelinda.

Não tinha gostado dela inicialmente. Ocupava-lhe o fofo sofá perto da janela com aquele rabo gordo. Tinha tentado, como quem não quer a coisa, lançar-se para esse assento, seu por direito, mas era impedido por uma perna. Deixava pêlo... - Pêlo?! O meu pêlo?! O que é que uns pelitos lhe fazem?

Esquisita aquela mulher. Houvera um dia, numa das constantes visitas que lhe destronavam o trono, em que a sobrinha vinha com um saco. Desensaca um objecto longo e viu-a a aproximar-se. Olhou-a sem se mexer, languidamente deitado no sofá. Não queriam ver que a chata queria ocupar o lugar. Fechou os olhos fingindo dormir profundo. Nisto, sentiu uma sensação de prazer, quase tão boa como o sexo com uma gata distraída. Institivamente levantou-se, arqueou a espinha e esticou a cauda. Aquela escova coçava-lhe o dorso divinamente. Arrepiava de bom. Minutos após, parou. - Mau, logo agora no melhor.

Fê-lo sair do sofá, empurrando-o e pegou na capa sacudindo-a à janela. Ainda atordoado da prazenteira massagem aproveitou para espreguiçar-se em grandes alongamentos. Soubera-lhe bem. Melhor lhe soube quando, a seguir, no seu prato, foi despejado o conteúdo de uma lata. Aquele odor era irresistível. Lançou-se e devorou tudo. Um verdadeiro acepipe.

Agora sim, deu-se ao trabalho de a olhar nos olhos. Teve o prazer de a conhecer.

Actualmente, em tardes de visita, sente-se o rei da casa. Pode optar pelo colo fofo e gordo da sobrinha ou o colo escanzelado e ossudo da dona, a velha Ermelinda, mas esse, não é para estar muito tempo. Só para variar nos mimos e festas porque o peixe e as pastas bem cheirosas estão garantidas.

- Isto é que é vida. Próxima dona, a sobrinha. Vou fingir que é ela que me escolhe.

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Comentários

Gostei. Adoro contos. Também os escrevos. Adoro gatos e gostei da forma como se colocou na pele deste. A leitura transmitiu-me imagens vivas e isso é muito bom para o autor. Parabéns!

 

Fernanda