O LAGO

      Scismava um dia na cruel sentença
      Com que a Egreja fulmina a raça humana,
      Deixando impura a fonte d'onde emana
      O sangue que me anima, e a alma que pensa:

      E ao passarem no ceu do meu destino
      As nuvens da tristeza e da saudade,
      Revellou-me o Senhor alta verdade,
      Junto ás margens d'um lago crystalino!

      Isto foi pelo mez do abrir das flôres,
      Quando a vida celebra os seus noivados,
      E o mundo, sob os verdes cortinados,
      Parece um doce thalamo d'amores!

      Estava um dia esplendido! a animal-o
      Eu via o seio azul do ceu mais lindo
      Curvar-se sobre mim, ethereo, infindo
      E tepido: era um gosto enamoral-o!

      Como fecho da abobada infinita,
      O Sol nos ceus, riquissimo objecto,
      Com barras d'ouro irradiava o tecto
      Do vasto pavilhão que o mundo habita!

      Côres variadas, fórmas differentes,
      N'um conjuncto de graças sem egual,
      Debuxavam-se ali ao natural
      Sobre o crystal das ondas transparentes!

      Alvas manchas d'insectos pequeninos,
      Envolvendo-se em giros caprichosos,
      Como tríbus de povos venturosos,
      Fruiam junto ao lago os seus destinos!

      Pelas balsas cantava a toutinegra,
      E as rolas modulavam doces côros,
      No ar passavam fremitos sonoros
      Co'as vibrações da Luz que o mundo alegra!

      No lago, a planta, a flôr, o ceu, a terra,
      Como notas d'uma unica harmonia,
      Revellaram-me á plena luz do dia,
      Enlevos que o prazer da vida encerra!...

      E eu via tudo, e extatico scismava:
      Se por ventura a colera divina,
      Segundo a Egreja ao mundo inteiro o ensina,
      Do gremio dos felizes me affastava!...

      E não podendo crer, embora obscuro
      Vêr-me qual sou, que esta alma de poeta,
      De tanto sonho explendido replecta,
      Atollada estivesse em lôdo impuro...

      Ai! quando a Deus pergunto se prendeu
      N'um pó que é vil o espirito divino,
      Olho o espelho do lago crystalino
      E não encontro o lago: encontro o ceu!

      O mesmo que era em cima azul, immenso,
      E a lampada brilhante que o alumia,
      Lá no fundo do abysmo aos pés os via,
      De sorte que em dois ceus era suspenso!

      E quanto se ostentava em torno ao lago,
      Os muros de verdura, a flôr mimosa,
      O deslisar da nuvem vaporosa,
      E a voltear do insecto incerto e vago:

      Outro tanto animava, ao longe, e ao perto,
      Aquella região d'azul vestida,
      Onde a minha alma, em extasi embebida,
      Contemplava na Terra um ceu aberto!

      E emquanto extasiado a sós fitava,
      Nas bellezas do lago transparente,
      Aqui uma flôr, além, para o poente,
      A nuvemsinha branca que passava,...

      Eis senão quando, uma ave, porque visse
      Insectos junto da agua socegada,
      Desceu subtil, aerea e delicada,
      E ao perpassar roçou-lhe a superficie,...

      O ponto ferido, em ondas borbulhando,
      Desabrochou em curvas graciosas,
      Como as folhas concentricas das rosas,
      Ou lusidias cobras imitando!

      E emquanto o impulso em torno se propaga
      Em circulos risonhos: n'um momento,
      Toda a cupula azul do firmamento
      Oscilla, treme e cae, e o Sol se apaga,

      E a arvore, e a flôr, e quanto junto á margem,
      Em doce paz, seu rosto reflectia
      No crystalino espelho, por magia
      Da lei do amor, a doce lei da imagem!...

      Fere-me então bem intima tristeza,
      Ao vêr aos pés, em sordido tumulto,
      Um lymbo verde e escuro onde occulto
      Estava um ceu tão rico de belleza!...

      Lembrei-me então da minha vida insana,
      De quanto sonho lindo anda desfeito
      Nos intimos arcanos do meu peito,
      Co'o tropel das paixões da vida humana!...

      E as lagrimas cahiram-me uma a uma
      Sobre esses bens que a Terra e os ceus inspiram,
      E ao contacto das coisas se extinguiram
      Como aereos balões feitos d'espuma!

      N'isto o Senhor, que tudo vê e ampara,
      Converte-me de novo o charco immundo
      N'um ceu azul infindo, e n'elle um mundo
      Formoso como os bens que imaginara!...

      Scismei então por longo espaço e digo,
      Que aos olhos meus por Deus fôra patente:
      Que a alma humana póde, ingenua e crente,
      _Vivendo em paz, um ceu trazer comsigo!_

      Ah muito embora a dôr seu peito opprima,
      O espirito, que abrange o mundo inteiro,
      Póde vêr, quanto justo e verdadeiro,
      Nos seios d'alma os ceus que estão por cima!

      Maxima grande, maxima tamanha,
      Tão repassada d'intima poesia,
      Porventura d'egual sabedoria
      Á predica de Christo na montanha,

      Ah! sê, por entre as sombras da desdita,
      A ponte aerea, o arco d'alliança,
      Que, em vez da excommunhão que a Egreja lança,
      A Deus eleva a Humanidade afflicta!

Coimbra

Quinta de Santa Cruz

1871.

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