Parte 2

 

"Ela sentia-se independente de si.

A pensar amargamente nisso, disse para consigo que se ia esquecer dele."

D. H. Lawrence

 

    "O relógio, o anel, um pfff de perfume, a carteira e um "Vamos" entre os lábios; desceu, apressadamente, os degraus tocando na madeira em bicos dos pés, entre o silêncio da madrugada e os murmúrios matinais.

    É já no carro, depois de sintonizar o rádio numa qualquer música embebida de sons de retratos de outros tempos, que lhe chegam imagens disparadas, separadas, carnais, irreais - até que param e regressa a claridade aos olhos e a consciência à alma: o sonho. Um daqueles que nos confundem nos primeiros segundos aquando despertos. O coração cai-lhe aos pés e contrai-se ao recordar a cidade de sempre e as pessoas de outrora, em vidas ajustadas pelo amadurecimento no tempo, reunidas em estórias noturnas, compridas, profundas, estruturadas e sentidas. O negro das sombras dissolvidas nos tons de sépia desfalecidos pelas ruas de pedras cinza caídas em muralhas perdidas na húmida neblina; os chãos nús de terra batida e musgo que ornamenta os limites dos edifícios de tijolo vermelho. Lá, ela encontra-o sempre: volta e meia cruzam-se no dia a dia rotineiro dum mundo criado na essência do inconsciente, talvez pela presença do ausente, que nada mais se trata do que duma lenta degustação de dor negligenciada no abstrato do mundo real - lugar mentiroso, também.

    Quando a curiosidade acalmou, conduziu pelas avenidas divididas por prédios altos, que assombra os caminhantes nas pedras das calçadas; dançou o carro pelos outros, entre os sons dos motores ferventes, dos insultos entrecortados por buzinas sôfregas, dos pensamentos gritantes, distantes. Distância... por mais distante que ele esteja, nunca estará suficientemente distanciado dela.

    Marcou o ponto no edifício onde trabalha, subiu no elevador e nele reencontrou-se com o espelho: evitando o olhar direto, alinhou os fios de cabelo sobre os olhos, corrigiu o eyeliner derretido, a saia colorida foi esticada e assente e pintou os lábios esponjosos, voluptuosos num discreto rosa claro.

    Pela hora do almoço já divagava pelas prosas, de sorriso adormecido na hipocrisia e de cabelos soltos do rabo de cavalo.

    Batiam os raios de sol na tela do computador e espalhava-se o laranja pelos labirintos de alcatrão quente, que ela olhava sem olhar, do andar onde estava sentada. No espelho do carro, refletiam na pele cansada os últimos raios do dia, que pintavam as janelas ao longo do caminho tardio de volta a casa; de volta ao vazio, ao escuro do silêncio, onde lhe esperava o nada.

    No percurso, um arrepio que lhe grita da fervura do coração, soluça até à mente e forma letras que lhe sussurram "liga-lhe"."

 

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