Indecifrável

Já era madrugada quando acordei assustado. O que havia acontecido nos dias anteriores me perturbava de tal maneira, que os meus pensamentos não me deixavam mais dormir. Uma mágoa atingia meu coração. Era um peso enorme e eu não conseguia me livrar desse peso de jeito nenhum. Fui até a sala sem fazer nenhum barulho e fiquei ali, sentado no sofá.

– Já não aguento mais isso... Outra vez o mesmo pensamento e eu aqui, sentado, olhando para o nada. – Suspirei, enquanto observava uma mosca que pousava sobre a televisão.

Pensei como seria mais fácil se eu trocasse de lugar com uma mosca. Afinal, ela não tem nenhuma responsabilidade e possui um ciclo de vida de aproximadamente um mês, quando vive muito. Já pensou viver intensamente, sem responsabilidades ou preocupações por um mês?

Para mim isso bastava, mesmo que fosse por apenas um mês de vida, viver dessa maneira já seria lucro.

Voltei à realidade e percebi o quão ridículo era esse pensamento, de viver como uma mosca.

Levantei-me e fui até a cozinha para uma dose de uísque, que era o meu grande aliado nessas horas de indagações filosóficas e pensamentos idiotas sobre como a vida poderia ser melhor. Dirigi-me até o quintal, sentei-me em uma cadeira de madeira que tinha lá fora e acendi um cigarro. Cigarro e uísque: A combinação perfeita para pensar e te levar à morte de maneira rápida e eficaz. Ok, voltando à cadeira de madeira: Ainda acho que essa cadeira foi uma das melhores coisas que meu pai havia comprado. Ela era confortável, voltada ao jardim. Uma bela vista, um belo lugar para pensar e ir morrendo aos poucos com a minha combinação letal favorita.

– É... Realmente, a vida poderia ser melhor. – Eu pensava entre uma golada e outra, entre uma tragada e outra.

– O que me faz ficar tão ruim e perder meu sono, são as pessoas. Parece que ninguém quer o bem de ninguém. Só queria aproveitar a vida sem que ninguém me magoasse. Só queria que as pessoas fossem melhores umas com as outras e não se afastassem repentinamente.

Sim, eu falava muito sozinho. Ainda falo. Só que bem menos. Na verdade, bem mais do que antigamente, mas isso não vem ao caso. Se você acha estranho falar sozinho, você quem é o louco da história.

– Por que o mal faz mais sucesso que o bem?

– Porque é isso que as pessoas querem! – Uma voz que vinha de trás exclamou e eu levei um susto tão grande que quase engoli o meu cigarro. Só não o engoli por que, quando ele entrou na minha boca por inteiro, a dor da queimadura foi tão grande que imediatamente o expeli.

– Você não vê? As pessoas buscam a maldade. Filmes violentos, programas que mostram a desgraça e banalizam a violência.

Era o meu pai que havia acordado e me dado tal susto. Fiquei puto da vida por ter perdido o meu último cigarro. Porém, ele era o meu grande parceiro nesses meus devaneios filosóficos. Ele, certamente, nasceu para ser filósofo. Seus pensamentos me deixavam boquiabertos e me faziam refletir por dias inteiros.

– E você, por que está acordado tão cedo? São cinco e meia da manhã ainda. – Disse ele, olhando para o seu relógio de bolso. Era um relógio dourado, bem antigo que, quando fechado, revelava uma escrita bem estranha: “Dominiculum Aeran Javestra”. Nunca soube o que significava. Na verdade, nem sabia que língua estava escrito. Não era Latim, mas parecia ser.

– Esse relógio tem uma história interessante. – Disse meu pai, percebendo que, mais uma vez, eu fitava o relógio sem piscar.

 – Eu o ganhei há exatos 28 anos, de um senhor que se chamava Anastácio. Esse senhor, na época, tinha 72 anos. Relojoeiro e um excepcional filósofo nas horas vagas. Com certeza, foi ele que me inspirou a adentrar nos caminhos do pensamento filosófico. Eu passava por um tempo muito sombrio em minha vida. Seu avô morrera de câncer no pâncreas. Semanas depois, sua avó, cometeu suicídio. – Contava meu pai, enquanto despejava uma dose de uísque em seu copo. Aliás, o copo dele era maior que o meu. Eu não sou o mais bêbado nessa história. Em compensação, meu pai fumava bem menos. Ele estava na vantagem, acredito.

Voltando à história: Nunca cheguei a conhecer meus avós paternos. Meu pai sempre falava muito bem deles e enchia os olhos de lágrimas, toda vez que falava dos meus avós.

– Anastácio foi quem me ajudou. – Disse ele.

–Arrumou um emprego para mim na relojoaria e me acolheu em sua casa. Eu já não tinha mais forças para fazer nada. A única coisa que eu queria era voltar no tempo. Eu acreditava que, se conseguisse voltar no tempo, talvez, as coisas pudessem tomar outro rumo. As coisas poderiam ter sido diferentes:

– Eu... Eu só queria voltar no tempo! Eu queria poder fazer algo para mudar tudo isso! Eu só quero que eles voltem à vida... – Disse para o velho relojoeiro, enquanto lágrimas não paravam de correr pelo meu rosto.

– Meu filho... – Disse Anastácio.

 – Ninguém morre antes da hora. Qualquer que tenha sido a duração de uma vida, ela é completa. Há pessoas que vivem muito, mas não vivem absolutamente nada. O inverso também acontece: Há quem vive pouco tempo, mas vive tão intensamente que esse pouco tempo, se torna séculos de uma vida bem vivida.

Essas palavras fizeram com que eu ficasse em um estado de reflexão total: O que o velho relojoeiro havia dito era a mais pura verdade.

– Tome meu filho... – Continuou Anastácio, tirando de seu bolso um relógio bem antigo, com uma escrita bem estranha grafada nele. Esse mesmo que você até pouco tempo atrás estava fitando atentamente.

 Estendi a minha mão e o velho Anastácio me entregou o relógio, pressionado os meus dedos para que eles se fechassem sobre o objeto.

– Esse presente é para você se lembrar de que o tempo não volta. O que aconteceu era a única possibilidade do que poderia ter acontecido. Não existe “E seu eu tivesse feito diferente”.

– Muito obrigado, Senhor Anastácio... – Disse, enquanto examinava o relógio com uma mão e limpava as lágrimas com a outra.

– “Dominiculum Aeran Javestra.” – Sussurrei, com uma grande dúvida do que significaria estas escritas.

– Um dia essas palavras farão todo o sentido para você. – O velho relojoeiro falou, enquanto se virava em minha direção.

– Quando essas palavras farão sentido? – Perguntei, quase que instantaneamente.

O velho relojoeiro sorriu por um instante e disse:

Quando você encontrar o sentido da vida.

Quando o meu pai terminou de contar a história, fiquei bastante pensativo. Enquanto bebericava um pouco do meu uísque, olhei fundo nos olhos do meu pai.

– Mas pai... – Quebrei o silêncio que se instalara ali, após o termino daquela curiosa história.

 – Você encontrou o sentido da vida? Digo, é realmente possível chegarmos a uma conclusão de o porquê estarmos aqui, vivendo, se decepcionado, nesse mundo tão estranho?

Ele ficou calado por alguns instantes e tirou de seu bolso um maço de cigarros. Tirou um e o acendeu. Eu pedi um, lógico. Ele havia feito com que eu quase engolisse o meu. Nada mais justo ele me dar um.

Ele me deu o cigarro e o isqueiro, ainda sem falar nada. Deu um gole na sua bebida e olhou nos meus olhos.

– Temo não ser possível, filho... – Falou ele, com um ar de chateação.

Eu apenas concordei com a cabeça e dei uma profunda tragada no meu cigarro. Era mentolado. Diria que era o meu preferido.

O mistério por trás dessas três palavras grafadas no relógio e da impossibilidade de descobrir os seus significados, me deixaram com um desconforto muito grande.

– Eu entendo o seu desconforto, filho. – Meu pai falou como se tivesse lido os meus pensamentos e soubesse exatamente o que eu estava sentindo.

– Mas acredito que a vida se trata disso: Algumas coisas, simplesmente não podem ser respondidas. Não há uma resposta para tudo. – Meu pai falou enquanto acendia mais um cigarro.

Ficamos calados por algum tempo, curtindo os nossos cigarros e as nossas bebidas. De repente meu pai disse:

– “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que toda nossa vã filosofia.”  

– William Shakespeare. – Disparei.

Eu gosto bastante de literatura. Era uma das minhas matérias favoritas na escola e eu era um verdadeiro nerd no assunto. Matemática eu era uma negação. Ainda sou, na verdade. Sei somar, subtrair, dividir e multiplicar. O restante é linguagem alienígena para mim.

– Sim. William Shakespeare é um dos meus dramaturgos favoritos. – Disse meu pai.

Ele era mesmo um grande fã dele. Meu pai detinha uma coleção com as principais obras de William Shakespeare e as guardava com muito zelo.

– Mas filho... Por que você está aqui fora tão cedo? Você não me respondeu ainda. – Perguntou meu pai

– Eu estou chateado demais. É uma magoa muito grande que venho carregando em meu peito e isso tem tirado o meu sono.

– Mas... O que te deixa assim magoado? Não esconda nada do seu pai! Lembre-se que tenho experiência de vida o bastante para lhe ajudar. – Exclamou meu pai, em um tom meio que heroico.

Eu sabia que podia contar com ele e, na verdade, sempre me sentia bastante a vontade para lhe contar qualquer problema. Ele sempre me ajudava e seus conselhos valiam ouro.

– Tem a ver com uma pessoa que se aproximou de mim e se afastou repentinamente, sabe? É uma garota que foi se aproximando de mim nos últimos meses e, sem mais nem menos, ela simplesmente passou a me evitar, a não falar mais comigo. Será que eu sou o problema? Será que ela não sabe que isso faz muito mal para mim? Não sei o que pode estar acontecendo... – Falei ao meu pai.

– Mulheres, mulheres... Elas não existem! – Disse meu pai, dando mais um gole em seu uísque.

Ele colocou mais um pouco da bebida em seu copo e mexeu-o em movimentos circulares.

– Se você não fez nada de errado, não disse nada de errado para essa garota, o problema não é você. As pessoas mudam, filho. Às vezes, se revelam. Ela, talvez, não fosse quem aparentava ser e se aproximou apenas por algum interesse e, vendo que não poderia tirar proveito de você, se afastou. Talvez seja isso. Eu já passei por situações assim e lhe digo: As pessoas são estranhas, filho. – Ele deu uma pausa pra um gole e uma tragada e continuou:

– Pode ser, também, coisas da nossa cabeça. E se ela não se afastou? Apenas está sem tempo, confusa com alguma coisa e nem percebeu que poderia estar se afastando de você?

Eu realmente não tinha pensado nessas possibilidades. Podia ser tanta coisa que eu nem sabia mais o que pensar.

– Filho, as pessoas são que nem as três palavras grafadas nesse meu relógio: Indecifráveis. – Meu pai falou, retirando mais uma vez o relógio do seu bolso e passando o seu dedo indicador sobre as três palavras.

De repente, o que eu estava sentindo e a história do relógio do meu pai se interligaram de tal forma que eu fiquei espantado.

 Meu pai sorriu e se levantou:

– Eu vou dormir um pouco mais. – Falou ele.

–Filosofar desgasta muito a mente, né pai? – Falei com um sorriso no rosto.

Ele sorriu de volta e deu mais um gole no seu uísque, enquanto caminhava para dentro de casa.

O peso que eu sentia já não existia mais. Essa conversa me fez pensar bastante e me fez descobrir que, realmente, nunca saberemos o que se passa com as pessoas. Elas são indecifráveis.

– “Dominiculum Aeran Javestra.” – Repeti antes de adormecer ali mesmo, na cadeira de madeira.

Deus, como eu gostava daquela cadeira!

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Comentários

Belíssimo texto!
Eu estava pensando em algo parecido e, de repente, me deparo com esse texto maravilhoso e inspirador, king!
Continue sempre escrevendo coisas assim!
 
Beijos e um ótimo ano novo!
 
<3
 
 

Olá, Allice!

Fico muito feliz que tenha gostado do texto!

 

Beijos e um feliz ano novo! :)  

 

 

 

Gostei muito de ler este texto!

Também acredito que não existe: e se...

Não vale a pena nos martirizarmos com esse: e se..

Maravilhoso!

cumprimentos

 

 

 

Olá, Zeca Castro!

Com certeza não devemos nos remoer com o: "E se.."

É algo que acaba nos atrasando e muitas vezes nos impede de viver a vida como ela deve ser vivida.

Abraços!

Belo texto! Uma realidade, as pessoas são indecifráveis!!!

Parabéns!

Tenho uma homenagem para todos os poetas em "ATOS DOS POETAS"

Dá uma olhadinha e comente, se gostar tá bom?

Beijos!!!