Mataram os passarinhos de Deus

Corpo Vivo (1962) é um instigante romance regional do escritor baiano Adonias Filho, que me causou grande impressão. Assim sendo, compus estes versos (em 1990) baseado no enredo, extraindo os ápices da trama que se desenrola no insólito sertão do sul da Bahia. 

Compartilho com os amigos. Apreciem e se gostarem, comentem. 

 

* Por Edir Araujo

(Resenha literária em versos)

 

Mataram os passarinhos de Deus

 

A morte, naqueles confins do sul da Bahia,

penetra as matas e os corações de pedra.

Como numa arena dos tempos romanos,

as feras devoram os inocentes...

para ambição feroz dos poderosos,

numa furiosa cegueira por mais e mais terras

(cujo ouro maldito é o cacau).

Ouvem-se gritos horrorizados pelas selvas;

é Hebe, anunciando, aterrorizada:

“Mataram os passarinhos de Deus.”

 

Padrinho Abílio é quem encontra os mortos.

Sobre o sangue derramado florescerá o cacau;

ouro que provoca ambição e desgraça.

Hebe profetizou o fim... e agora corre alardeando

por aqueles rincões, pelas entranhas daquele mundo selvagem:

“Mataram os passarinhos de Deus."

 

Compadre Januário e família, mortos.

Da chacina só escapa o menino Cajango.

Nosso fabuloso herói, que parece personificar

tão bem uma tragédia grega, tamanha a sua grandeza.

E ei-lo já crescido, a vingança nos olhos,

o bugre, a cara de pedra, cuja rebeldia,

transcende toda a amargura do seu peito.

Tendo por único objetivo; vingar a bruxa doida;

é Hebe, bradando aos quatro ventos:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

 

Há também um tal de João Caio, com sua pulseira de ferro.

Dico Gaspar, com seu calção de couro de carneiro;

chefe de um dos bandos de Cajango, que castigará

severamente caboclo Juca, o traidor,

sendo devorado pelos cães famintos.

É o selvagem tagarela nas roças de cacau.

É temido, e seu nome está em todas as bocas,

em todos os caminhos, por onde também passa

Hebe, que grita, célere:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

 

Entre os seios de Malva,

a cruz de arame do negro Setembro;

morto heroicamente num combate.

Mas a presença desta mulher foi reclamada

pois que poria em risco a vida de Cajango,

caído de amores por ela, e um deles dirá:

“Hebe, a bruxa doida, avisou muitas vezes

que esta mulher chegaria...”

E chegou. E com ela a discórdia...

Mas um deles também teria dito:

- "Cajango deveria ter matado Hebe".

Cujos gritos ecoam pela selva sombria:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

 

Qual uma entidade fantástica, vivente das sombras,

dela falam as bocas, os ouvidos ouvem, aqui e acolá;

É Hebe, a velha bruxa, berrando,

como uma alma penada, pelas veredas:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

 

Cajango é caçado, implacavelmente.

E todos querem a sua cabeça.

Sua cabeça está a prêmio, vale ouro!

Talvez tanto quanto a desenfreada

cobiça dos fazendeiros de cacau.

Mas no que tange ao amor, com seus encantos,

só uma mulher faria o milagre.

Assim Malva entraria em cena,

conquistando seu coração de pedra;

rude, vingativo e selvagem...

Pela qual nosso herói mata Inuri, seu tio e tutor,

num duelo épico, lírico, sangrento.

E corre o casal, numa fuga incansável.

Deixando para trás a terra banhada de sangue.

O ouro dos cacaueiros, a ferocidade, a morte.

A velha bruxa, com seus cabelos de algodão;

gritando loucamente, espavorida:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

 

Dizem que ela tem cem anos.

A primeira mulher branca a endoidecer

naquelas terras, cujo cacau é o deus supremo.

Viu o Sangrador matar os meninos, e enlouqueceu.

Agora corre, doidivanas, por entre as árvores,

que parecem dormir sob um céu de chumbo.

ouvem-se seus gritos, numa voz esganiçada:

“Mataram os passarinhos de Deus.”

 

Cajango e Malva, o homem e a mulher.

Seguirão, determinados, numa fuga sem igual.

Nunca houve em tempo algum um amor tão selvagem!

É Cajango com seu facão, desafiador,

abrindo caminho entre o capinzal,

puxando a mulher pela mão. O amor de um bugre!

Cujo penhor custou-lhe a fúria, suor e sangue.

Parecem ainda ouvir atrás de si os gritos de Hebe:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

 

Mais a frente; a serra, o chapadão.

Lá encontrarão o ninho, extasiados.

Mão na mão, olho no olho, ali se amarão.

Decerto terão filhos, decerto a paz reinará,

e não mais pisarão o sangue humano.

Mas quem ousaria chegar lá onde estão?

Eles chegaram. O solo é úmido.

Febril é o seu coração pela amada.

Uma muralha de pedra, medonha, dobra-se

entre eles e aquele mundo sanguinário e tenebroso.

Talvez nem o vento chegue lá,

onde estão, onde nenhum humano pisou.

E ali construirão o ninho e gozarão a vida.

Mas jamais esquecerão de Hebe.

A velha bruxa e os seus gritos insanos:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

 

Cobre eles agora um novo céu.

Fitarão as estrelas, radiantes...

E não terão saudades daqueles dias infaustos.

E o homem dirá a mulher que o inferno ficou para trás.

Uma terra inóspita e beligerante,

onde o ouro do cacau provoca tanta tirania,

tanta amargura e tanta morte...

E seus ouvidos, durante a tempestade,

parecerão ouvir entre os trovões,

de muito longe, o eco de um grito longínquo.

Será Hebe? (dirá o homem) a velha bruxa?

Sim... que ainda vive naquele inferno.

Ela profetizou o fim, já é uma lenda.

Correndo, desvairada...

Uivando como um cão danado:

“Mataram os passarinhos de Deus”.

 

Inserido no livro Gritos e Gemido, pág. 30.

Edir Araujo Reservados Direitos Autorais.

Registro ISBN - 978-85-913565-2-2

 

Poeta e escritor, autor dos livros: A Passagem dos Cometas, Gritos e Gemidos, Fulana (inédito) e Amante das Trevas (em construção) e muitos poemas, crônicas e resenhas publicados na internet, em sites, blogs, jornais, etc.

 

 

 

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